Quanto um boi bebe de água para produzir um quilo de carcaça?

Pesquisador da Embrapa revelou que a água que o bovino bebe representa menos de 1% de todos os recursos hídricos utilizados no ciclo da produção da carne

Da pegada hídrica total para produzir um quilo de carne, quanto de fato vem da água que o boi bebe? Em entrevista ao Giro do Boi nesta terça-feira, dia 18, o zootecnista, Júlio Palhares, doutor em ciências da engenharia ambiental pela e pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, falou sobre o assunto que foi tema de uma pesquisa recentemente conduzida por ele na unidade de pesquisas em São Carlos-SP e cujo artigo científico foi publicado na edição de março da publicação Science Direct.

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Conforme publicou a própria Embrapa em reportagem sobre a pesquisa conduzida por Palhares, a “pesquisa chegou a um valor médio de pegada hídrica que varia de 29 mil a 32 mil litros de água por quilo de carcaça. Nesse cálculo, segundo Palhares, foi avaliada a contribuição da mãe na fase de cria. Ao desconsiderar a pegada hídrica da vaca, há uma redução de até 52% no valor do indicador. Chega-se ao número global médio de 14 mil litros de água por quilo de carne”. Entretanto, conforme salientou o pesquisador em sua participação no programa desta terça, menos de 1% desse total vem da água que o bovino bebe.

“Através de uma série de abordagens, a gente chega a essa relação. Muitas vezes o pessoal vê os números, e eles são altos quando a gente fala em carne bovina, e se pergunta: mas o animal bebe tudo isso de água? Não, o animal não bebe tudo aquilo de água. A água que o animal bebe é uma pequena parte desse número da pegada hídrica que nós calculamos. […] Geralmente, quando a gente fala em produção animal, seja ela a carne bovina, suína, aves, leite, ovos, a água que o animal bebe não chega a representar 1% do valor que a gente calcula. É muito pouco. A grande representatividade nesse valor da pegada hídrica é a transformação dos alimentos, ou seja, tudo que entra pela boca do animal (convertido) em água. Nós usamos uma técnica da agronomia, que é centenária, que é o cálculo da evapotranspiração de uma cultura vegetal e a partir daí nós conseguimos calcular quanto aquela cultura vegetal consumiu de água para atingir o seu crescimento. Então para qualquer pegada hídrica de produto de origem animal, grande parte dela, o alimento, é que nós transformamos em água e que nós chamamos isso de água verde”, esclareceu o pesquisador.

Palhares justificou a importância da gestão dos recursos hídricos no País. “No Brasil, nós estamos entrando na época de seca em algumas regiões, quando as chuvas ficam muito escassas. A gente sabe o quanto isso pode ser prejudicial para a produção de alimentos, porque não existe produção de alimentos sem água. O Brasil, como um dos maiores produtores de alimentos do mundo e também com uma riqueza hídrica fabulosa, tem que ser estratégico em conservar e preservar esse recurso para dar sustentabilidade para essa produção de alimentos”, sustentou.

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Palhares explicou, então, de que se trata a “régua” que mensura o uso desse recurso. “A pegada hídrica é uma metodologia que foi criada há mais ou menos 18 anos por um grupo de uma universidade holandesa e nada mais é do que uma relação de ciência. A gente chega à relação de litros de água por quilo de carne produzido, ou quilo de leite, mas também podemos calcular a pegada hídrica de uma pessoa por dia ou de uma nação ou do mundo inteiro”, informou.

Palhares destacou que o objetivo do cálculo da pegada hídrica não é chegar ao número em si nos valores absolutos, mas sim usar o indicador para comparar desempenhos e fazer a gestão dos recursos hídricos. “Nós transformamos basicamente tudo que se relaciona ao produto em água, nós fazemos uma conversão por uma série de abordagens e chegamos a essa relação. Mas mais importante do que número, […] é que ele nos proporciona fazer a gestão do recurso. Então, ao saber o número, a gente quer ir além, que é promover a gestão. Porque a grande pergunta do produtor é: ‘tudo bem, mas o que eu tenho que fazer para ser mais eficiente? Ou seja, como com o mesmo litro de água eu consigo produzir mais carne?’. Daí eu estaria aumentando a minha eficiência hídrica. Então a pegada hídrica faz isso. Dá essa sinalização para o produtor ou para a sociedade ou para quem está lá manejando o recurso sobre qual a eficiência dele hoje e o que a gente pode fazer para melhorar essa eficiência”, especificou.

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AS TRÊS ÁGUAS

O zootecnista destacou que dentro de um cálculo de pegada hídrica, o uso da água está dividido em três categorias. “Quando nós calculamos a pegada hídrica, por uma questão de melhor interpretação dos resultados, nós calculamos três águas: a água verde, a água azul e a água cinza. A água verde é […] a transformação dos alimentos em água através do cálculo de sua evapotranspiração. A água azul é toda aquela que nós captamos de fontes superficiais ou subterrâneas, então como a que vem de um rio, de um lago, de um poço, uma nascente, e é essa água que vai entrar pela boca do animal ou que nós vamos usar para irrigar uma cultura ou para lavar uma instalação. Tudo isso entra nesse conjunto de água azul. E a água cinza é aquela relacionada ao impacto no meio ambiente. Todos os animais geram resíduos na forma de fezes e urina ou de alguma água de lavagem, que é um efluente, como a gente fala. E nós calculamos quanto o ambiente vai suportar daquela carga poluidora que está sendo disposta ali para manter o seu padrão natural. Enquanto quanto de água ele irá consumir para manter esse padrão natural? Para isso, nós consideramos uma série de questões, como legislação ambiental e outros aspectos. E daí nós calculamos essas três águas. Enquanto quando se apresenta um valor de pegada hídrica, geralmente a gente apresenta as porcentagens dessas três águas, verde, azul e cinza”, revelou.

Foi para descobrir como ser mais eficiente na pegada hídrica na engorda de bovinos que o pesquisador conduziu o experimento pela Embrapa Pecuária Sudeste. “A grande pergunta que lá na ponta se quer saber é o que eu tenho que fazer para ser mais eficiente. Então nesse estudo nós fizemos uma intervenção, porque se a dieta é a grande contribuinte para o valor de pegada hídrica de um bovino de corte, nós manipulamos essa dieta para ver qual o efeito dela em dar mais eficiência hídrica a esse produto. Foi o que nós fizemos neste estudo”, disse.

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IMPACTO POSITIVO NA ECONOMIA CIRCULAR

O especialista deu detalhes sobre as condições do estudo. “Nós consideramos um ciclo de produção de cria e recria a pasto e terminação em confinamento e isso tudo levou dois anos e meio para ser concluído. Nós trabalhamos só com animais Nelore machos, e foram animais aqui da Embrapa. Nós rastreamos os animais em todos os seus aspectos zootécnicos e ambientais desde o seu nascimento até o abate, com cria e recria a pasto, o alimento principal somente o pasto e uma suplementação mineral. E, no confinamento, nós fizemos a manipulação dessa dieta. Esses animais foram divididos em dois grupos. Um grupo era alimentado por uma dieta que nós chamamos de convencional, à base de silagem de milho, farelo de soja e milho grão e o outro grupo com uma dieta de coprodutos, em que também o volumoso era silagem de milho, mas o concentrado era gérmen de milho, a casca de amendoim e a polpa cítrica. E daí calculamos a pegada hídrica na cria, recria e terminação e na terminação avaliando a influência dessa dieta”, contextualizou.

Conforme constatou o zootecnista, as projeções dos pesquisadores foram confirmadas no experimento prático. “Nós validamos a hipótese que nós tínhamos. E qual era ela? Que a dieta com coprodutos proporcionaria um menor valor de pegada hídrica ao produto carne, consequentemente uma melhor eficiência hídrica. Isso nós visualizamos. Então essa dieta com coprodutos manteve o desempenho (dos animais), não houve diferença entre os grupos, essa dieta não teve nenhum impacto negativo em termos de desempenho, em ganho de peso, conversão alimentar, idade final de abate e peso final, […] mas com essa vantagem de termos, ao final, um produto hidricamente mais eficiente”, observou.

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“A dieta com coproduto teve uma pegada hídrica 13% menor do que a dieta convencional. E tem ainda uma vantagem. Quando você trabalha com coprodutos, você está pegando um produto que não é nobre, não é a soja ou milho, que é um subproduto de uma agroindústria, no caso a polpa cítrica, no caso a indústria do amendoim, a casca, e nós estamos agregando valor a esse coproduto, transformando ele em carne nobre. Isso também tem uma importância ambiental, de transformar o que era o coproduto de uma indústria no produto nobre de uma outra indústria, que é a da produção animal. Hoje, Isso está dentro um termo que também tem aparecido muito, que é economia circular. Nós estamos circulando as coisas dentro das cadeias de produção e podemos ganhar ambientalmente e economicamente com isso também”, ressaltou.

“A gente não perde fazendo isso porque a gente vai estar economizando recurso que a gente compra, vai estar economizando recurso natural e a gente vai também estar dando muito mais eficiência ambiental a esses animais. É simplesmente fazer o uso de coprodutos. O uso de coprodutos em produções de bovinos não tem nada de novo. O novo da pesquisa, o que nós mostramos, é voltar um olhar hídrico a isso, porque isso já é feito há muito tempo nos confinamentos, mas não com olhar hídrico. Nós mostramos agora que isso também tem uma vantagem hídrica”, analisou.

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DIFERENÇA ENTRE INDIVÍDUOS

Mas o zootecnista destacou que é imprescindível o pecuarista levar em consideração não somente o desempenho médio de um lote ou categoria. Isso porque o experimento indicou que houve uma diferença de sete mil litros de água na pegada hídrica de indivíduos dentro do mesmo grupo.

“Apesar de nós estarmos falando que são animais de mesma genética, de mesma raça, que nasceram praticamente na mesma época e sob as mesmas condições ambientais, mesmo assim a gente sabe que existe individualidade. E nós avaliamos isso porque nós temos uma estrutura, principalmente a de confinamento, em que nós podemos avaliar individualmente tanto o consumo de ração como o consumo de água dos animais. […] E apesar de toda essa homogeneidade que nós tínhamos no grupo de animais, essa individualidade aparece. E chegou a essa diferença de até sete mil litros de diferença entre o animal com a pegada hídrica menor daquele mesmo grupo e naquele mesmo grupo teve o animal com a pegada máxima. […] E por que isso acontece? Basicamente porque os consumos individuais, tanto de dieta como de água ao longo do dia são diferentes entre esses animais. Isso vai impactar no cálculo dessa pegada hídrica. E isso nos dá a seguinte reflexão: muitas vezes, nós tomamos a decisão pela média. Se usarmos como exemplo um confinamento comercial, nós temos grupos enorme de animais, com 500, 1.000, 5.000 cabeças, onde geralmente elas são separados em lotes, e calcula-se pela média. Claro que num confinamento com essa escala é difícil a gente avaliar a individualidade. Mas nós precisamos ter conhecimento de que essa individualidade existe e tomar práticas de manejo para que o desvio entre o máximo e mínimo seja menor e, certamente com isso, a nossa tomada de decisão vai ser mais assertiva”, observou.

+ Leia aqui a reportagem da Embrapa “Pegada hídrica entre bovinos pode variar até sete mil litros por quilo de carcaça” na íntegra

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Pelo vídeo a seguir é possível assistir a entrevista completa concedida por Júlio Palhares ao Giro do Boi desta terça, 18: