353 gramas ao dia, ou 128 quilos por família por ano, sendo que 22% desta quantidade são de arroz, 20% de carne bovina, 16% de feijão e 15% de frango. Este é o quadro de desperdício de alimentos do consumidor brasileiro, que foi descoberto por uma pesquisa realizada em 2018 por uma parceria entre a Embrapa e a Fundação Getúlio Vargas para o projeto “Diálogos Setoriais União Europeia – Brasil”.
Nesta quinta, 27, o engenheiro agrônomo, mestre e doutor em fitopatologia e pesquisador da Secretaria de Inteligência e Relações Estratégicas da Embrapa, Gilmar Paulo Henz, falou ao Giro do Boi a respeito do tema e também comentou a nova lei nº 14.016, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 23 de junho 2020, que pode contribuir para redução do desperdício de alimentos no Brasil.
Henz contextualizou em primeiro lugar a estimativa de desperdício de alimentos no aspecto global, em que a FAO aponta que cerca de ⅓ do total é perdido. “Esta é uma estimativa genérica da FAO, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Mas nós sabemos que estas perdas, este desperdício de alimento varia muito em função da região e do nível de desenvolvimento dos países. Também outros fatores que influenciam muito são questões culturais, o tipo de alimento, a etapa de cada cadeia que a gente está considerando e, principalmente, os hábitos alimentares de cada nação. Só para dar um exemplo, em países mais desenvolvidos, como da Europa, Estados Unidos, Canadá e Japão, se considera que 40% das perdas ocorram nos domicílios e no varejo. Se você considerar, por exemplo, o continente africano, isso já muda muito porque o problema na África são as perdas no campo e do campo até chegar na comercialização, considerando que eles têm uma estrutura deficiente de estradas, eles não têm um sistema bom de armazenamento, têm muitos problemas de comercialização. Este é um número genérico, mas não reflete a realidade de cada região, cada região tem suas particularidades”, apresentou o agrônomo.
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“A situação mais grave de perdas que a gente considera é, principalmente, em produtos que são mais perecíveis. Então, por exemplo, frutas e hortaliças, como têm bastante teor de água e são mais sensíveis, as perdas são muito grandes. Já grãos é um pouco o contrário, porque grãos você quer manter seco. Mas grão perde muito no transporte e na colheita”, acrescentou.
Conforme lamentou o pesquisador, o problema gera uma grave consequência. “O programa mundial de alimentos, que é uma organização ligada à FAO, estima que em 2019 mais ou menos 135 milhões de pessoas no mundo estavam em situação grave de fome e de desnutrição. Desses 135 milhões, 65% são concentrados em dez países que passam por problema sérios de guerra civil”, lastimou. Henz acrescentou ainda que, desta lista de dez países, cinco estão na África (entre eles o Iêmen), três no Oriente Médio (entre eles a Síria) e dois na América (Haiti e Venezuela).
O quadro, inclusive, deve se agravar, conforme estimativas da própria FAO. A pandemia deve fazer com que o número de pessoas no mundo em quadro grave de desnutrição e fome cheguem a 265 milhões. “A comida que existe hoje no mundo seria suficiente para você alimentar a população mundial inteira. Quer dizer que tem outros problemas, não só a questão de desperdício, de perdas, mas também a questão de distribuição. O acesso das pessoas à alimentação. O Brasil tem uma situação privilegiada porque nós passamos de importadores de alimentos nos anos 60 para exportado. Hoje talvez o Brasil seja o maior exportador mundial de alimentos”, ponderou Gilmar.
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O pesquisador detalhou, então, a pesquisa que estudou os hábitos de consumo das famílias brasileiras. “Essa pesquisa foi feita em cooperação entre a Embrapa e a Fundação Getúlio Vargas num projeto que é chamado de Diálogos Setoriais União Europeia – Brasil. Foi feita uma pesquisa com 1.764 famílias consumidoras e se descobriu várias coisas muito interessantes sobre os hábitos alimentares do brasileiro. Além de mensurar quanto cada família desperdiça de alimento, que o número chegou a 353 gramas de comida por dia, ou 128 quilos por ano por família, a gente descobriu que os alimentos mais desperdiçados são o arroz, com 22%, carne bovina, em 20%, quer dizer, um item caro, o feijão, com 16%, e frango com 15%. Só aí a gente já tem uma demonstração de que a comida diária básica do brasileiro a gente desperdiça muito. […] Frutas e hortaliças ficam em torno de 4%”, especificou o agrônomo.
Segundo Henz, a pesquisa apontou ainda alguns hábitos que contribuem para o desperdício, como o fato de que 77% dos que responderam à pesquisa dizerem que a comida precisa ser fresca, ou seja, preferem não comer comida de ontem, por exemplo. Para 52%, a fartura é importante. Gilmar acrescentou ainda um hábito que existe na população brasileira que é um resquício dos tempos de inflação: a compra do mês, que também pode agravar este desperdício.
“Na Europa ou mesmo no Japão, em países que passaram por catástrofes naturais ou por guerras, eles têm uma relação com a comida muito diferente da do brasileiro. Eles servem a quantia que vão comer. Aqui não”, advertiu o pesquisador.
Além da mudança de hábitos, Gilmar apontou que a recém aprovada Lei nº 14.016, de 23 de junho 2020, deve ajudar a evitar a perda de alimentos no país. “A gente considera uma vitória muito grande porque desde 1998 tramita no Congresso Brasileiro um lei que teoricamente descriminaliza doação de boa-fé de alimentos, que é chamada Lei do Bom Samaritano. Esta proposta foi feita pelo então senador Lúcio Alcântara, do Ceará, em 1998. […] Nós estamos falando de 22 anos atrás. Esta lei simplesmente descriminalizava a doação de boa-fé. Quer dizer, o dono do restaurante, se doasse os salgadinhos, a pessoa que recebesse, fosse ela um consumidor ou uma instituição de caridade, um asilo ou uma creche, passaria a se responsabilizar por aquele alimento. Mas este projeto nunca foi aprovado. Ele ficou rolando no Congresso e, durante este período de 20 anos, outros 30 projetos similares ou que tratavam do tema estavam tramitando no Congresso. Agora, com a pandemia, felizmente resolveram que era hora de aprovar algum de tipo de projeto. Então o projeto a gente considera uma vitória porque todo mundo que doava alimentos no Brasil fazia na base da confiança, não tinha um marco legal, não tinha uma lei, não tinha nada que garantisse”, celebrou.
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“A lei vem facilitar a doação de alimentos, mas, na verdade, é importante dizer que existe, sim, doação de alimentos no Brasil há muitos anos. Por exemplo, existem mais de 300 bancos de alimentos”, disse Gilmar, indicando que mesmo antes de ter uma certa segurança jurídica, já havia a boa intenção por parte da população. Henz citou exemplos como os bancos de alimentos da Ceagesp, em São Paulo, da Ceasa de Brasília-DF, onde reside, o programa Mesa Brasil, do Sesc, que ajuda a redistribuir os alimentos, em alguns casos até na forma de refeições prontas, e uma plataforma chamado Comida Invisível, que criou um aplicativo que ajuda doadores a encontrarem receptores de alimentos próximos para facilitar a logística de doação.
Com a nova lei aprovada, o acordo informal entre doador e e receptor passa a encontrar respaldo na legislação. “A gente entende que é um progresso, sim, e que vai evitar ainda mais o desperdício”, concluiu Gilmar.
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Veja a entrevista completa com Gilmar Paulo Henz no vídeo a seguir: