Infância “sem mimimi” fortaleceu produtora que virou líder de sindicato no Pantanal

Conheça a história da pecuarista Ida Beatriz Machado de Miranda Sá, que assumiu o Sindicato Rural de Cáceres-MT em meio à pandemia e à seca severa de 2020

Uma infância rústica como a de qualquer criança pantaneira, “sem mimimi”, serviu como alicerce para que Ida Beatriz Machado de Miranda Sá se tornasse uma mulher e pecuarista forte – e não só por ela e por sua família, como também para a comunidade de produtores rurais de Cáceres-MT. Desde o ano passado, Ida é presidente do sindicato rural do município mato-grossense, assumindo o posto logo no primeiro dia de pandemia de Covid-19 e também em meio ao desafio de uma das piores secas dos últimos anos da região, que resultou, no ano passado, em uma das mais severas queimadas já registradas no bioma.

Em entrevista ao Giro do Boi nesta quinta-feira, dia 27, a produtora e líder rural contou sua história, seus desafios como mulher e pecuarista e suas aspirações como líder local. “Eu nasci no Rio de Janeiro. A família do meu pai é do interior do estado do Rio e minha mãe é de Cáceres, pantaneira. Ela nasceu na Fazenda Trimedal e eu vim para cá logo cedo, depois tive a minha vida em Campo Grande e aí eu me formei e depois vim para cá, para Cáceres”, resumiu.

Ida pertence à quarta geração de produtores rurais, linhagem teve início quando seu bisavô chegou da Alemanha. “Tudo iniciou com o meu bisavô, que veio da Alemanha, casou-se com minha avó, uma boliviana, e ficou na Bolívia. E meu avô começou a trabalhar aqui já com a pecuária pantaneira também em Cáceres. Então teve meu bisavô, meu avô, meus pais e agora somos nós, com a incumbência de manter a pecuária pantaneira viva”, disse Ida, compartilhando sua história em participação no programa.

O processo de sucessão familiar para a produtora foi natural e, conforme revelou, começou desde cedo. “A ideia é essa mesmo. A sucessão familiar é assim que se dá, levando filho na fazenda, trabalhando a lida do dia a dia e mostrando, porque realmente o escritório do produtor rural é o mais bonito que tem”, sustentou.

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Mais do que a beleza do escritório em uma fazenda, Ida foi impactada pela beleza e pelos desafios do bioma onde a propriedade se encontra, em pleno Pantanal, a maior área alagável do planeta. “O Pantanal é aquela história, […] a gente sai do Pantanal, mas o Pantanal não sai de dentro da gente. Então eu acho que tem essa resistência, esta resiliência, este amor pela natureza, esta harmonia que nós vivemos. O Pantanal é um protagonista na minha vida. A minha criação foi dada lá, enfim, todo o trabalho, a forma como enxergo o mundo, […] a forma de enxergar, trabalhar e comunicar é muito distinta. E o Pantanal tem muito papel na minha vida, tem muita força na minha vida quanto a isso”, reconheceu.

INFÂNCIA “SEM MIMIMI

A pecuarista e presidente do Sindicato Rural de Cáceres-MT contou quais foram os princípios que aprendeu quando criança e como eles ajudaram a transformá-la na líder que é atualmente. “É tão interessante isso. Quando se tem a possibilidade de contar um pouco a sua história, você começa a reviver e dá um mergulho na sua vida. E eu me lembro quando nós começamos, meu pai cuidava da Fazenda Trimedal e nós ficamos lá até os meus 14 anos, mais ou menos. Tinha um monte de criança. Eram 16 crianças. Chegava o mês de junho e todo mundo começava a ligar. ‘Tio Berto, tia Ilma, nós queremos ir para a fazenda!’ E ia essa trupe para a fazenda. E era isso mesmo, levantava de manhã cedo, madrugava, ia para o mangueiro para ver tirar o leite no curral, tomar leite no curral, já voltava, já ia pegar o cavalo no piquete para fazer a forma, botava o cavalo em forma, cada um arriava o seu. […] O gado no Pantanal não é dos mais afáveis. Naquela época eram mais afoitos. […] […] E o meu pai foi militar, ele foi reformado e veio para cá muito cedo. […] A gente tinha que trocar o pneu da Toyota Bandeirante e éramos nós mesmos. Ele nos ensinava… ‘Pega a chave de roda, sobe desse jeito’… Então desde bem nova, ele sempre nos ensinou toda a lida mesmo e como fazer isso”, observou.

Ida (ao lado de seu pai na foto acima) valoriza suas raízes no campo cultivadas desde a infância.

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“Não tenha dúvida (de que me fez uma pessoa melhor). Eu fui construída assim, não tinha ‘mimimi lá em casa. Menino e menina, era aquela conversa: onde corre pau, corre machado. Então era isso mesmo, com meu pai não tinha conversa. Ele mandava mesmo que nós fôssemos para o campo, arriava cavalo e quando chegava também tinha que desarriar, dar banho no cavalo, soltar, passar escova e íamos para o campo”, acrescentou a pecuarista.

A produtora salientou que além de aprender sobre a pecuária em si, estar presente na lida logo cedo também ensinou a valorizar as pessoas do campo. “Isso não mata ninguém, muito pelo contrário. Eu acho importante essa possibilidade de você estar no dia a dia, com os peões, porque eles trabalham conosco e são os nossos amigos, eles ajudam nas tomadas de decisões, você enxerga a diferença sobre como se identifica um animal de outro, um animal que está com machucado ou um que está mais acuado, uma vaca que realmente é boa. É aí que você realmente vai ajustando o seu olhar, a sua filigrana no negócio, no dia a dia. Isso fez de mim uma pessoa muito mais forte, não tenha dúvida”, confirmou.

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Além de valorizar a família e os princípios com os quais teve contato na infância, Ida também falou sobre a importância da religião como base de sua força como pecuarista e líder do setor. “Essa questão da espiritualidade é uma coisa que na minha família sempre foi muito bem regada e trabalhada. Essas fotos (veja em destaque abaixo, das missas celebrada em sua propriedade em Cáceres-MT) são desde que nós entramos na fazenda. Meu pai faleceu em 2015 e em 2016 nós começamos as atividades. Modicamente, tudo com muito planejamento, com muito cuidado para sentir, entender primeiro o que era a lida do dia a dia. Eu tinha experiência, mas uma coisa é você estar em uma equipe, outra é você estar à frente de uma equipe. Isso é muito distinto. E essa é uma das coisas que nós fizemos. Eu sou devota de Nossa Senhora de Guadalupe, cujo dia é celebrado em 12 de dezembro. E todo dia 12 de dezembro, desde que nós recebemos a fazenda, nós fazemos uma missa em agradecimento, para oferecer tudo que foi feito e é uma possibilidade de nós comungarmos com as pessoas que fazem da nossa equipe, as pessoas que nós estamos mais no dia a dia, os nossos parceiros. É bem pequena ainda, mas a ideia é essa, de fortalecer os laços religiosos, espirituais. E vão familiares dos funcionários também, é muito bacana”, ressaltou Ida.

Missa em celebração do dia de Nossa Senhora de Guadalupe: tradição de 12 de dezembro na Fazenda Trimedal.

DE PECUARISTA A PRESIDENTE DO SINDICATO

Ida apontou ainda como começou sua experiência como presidente do Sindicato Rural de Cáceres-MT. “Foi um grande desafio. Tem sido um grande desafio. Mas eu acredito que os desafios são necessários para nós, para nos apropriarmos e para nos elevarmos. Nós precisamos sempre estar procurando onde está o nosso limite e sempre ir um pouco à frente. Então eu assumi o Sindicato Rural de Cáceres, foi um prazer enorme, e tem sido. Eu já era da diretoria, eu era diretora do presidente, do Jeremias Pereira Leite, uma grande pessoa no nosso município, no nosso estado, e de lá para cá foram desafios sobre desafios”, contextualizou.

O primeiro dos desafios foi assumir em meio a uma seca severa, quando grandes queimadas já eram esperadas pelos produtores locais da região. “Todo mundo estava ciente. Nós, como pantaneiros, estávamos cientes de que o flagelo iria acontecer mais dia, menos dia”, admitiu.

Ida lembrou que com o fim da antiga prática comum aos produtores locais da região, que punham fogo na macega que sobrava depois das enchentes para renovar a vegetação, houve um acúmulo de material que serviu como ‘combustível’ para o fogo.

“É importante você estar na lida do dia a dia, próximo de quem realmente trabalha (para entender). O Pantanal está aonde está hoje, com mais de 80% de conservação de vegetação nativa, porque o pantaneiro esteve lá. Nós temos mais de 335 anos de produção pecuária extensiva, que tem boi no Pantanal. Isso é muito expressivo. Então o produtor rural, o pantaneiro, foi ele quem fez a conservação desse bioma, dessa maior planície alagável do mundo. E essas práticas[…], todos os pantaneiros faziam isso. Em Poconé, Corumbá, Ladário. Chegava ali em maio, começava a vazante da água, ela começa a descer, você chegava com aquele fogo, ia queimando aquela macega que ficava ali por cima e o pasto vinha mais revigorado. O solo estava úmido, permaneciam as propriedades do solo, os nutrientes, e baixava aquela macega. E o que aconteceu nos últimos anos, nos últimos 12, 14 anos? Isso acabou, pois foi proibido. […] E foi isso que aconteceu no Pantanal no ano passado. Muitos anos sem queimar, teve uma quantidade enorme de combustível e quando o fogo veio, encontrou um material de vários anos acumulados”, justificou.

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Embora o fogo faça parte da rotina do bioma pelo seu ciclo de águas e seca com muito calor, que gera condições naturais para o fenômeno, Ida lembrou que o sindicato rural está trabalhando intensamente para amenizar o problema nos próximos ciclos. “O homem e a mulher pantaneira, a água, a seca, o fogo e o boi. É que o que existe no bioma. É exatamente isso. O fogo faz parte da nossa vida no Pantanal, só que a dimensão como ele vem, é isso que nós temos que trabalhar, isso que nós estamos trabalhando, inclusive”, lembrou.

“No ano passado, em meados de junho, […] nós fizemos uma reunião com o Sindicato Rural, o Corpo de Bombeiros, a Sema e a Unemat e identificamos o que nós poderíamos fazer naquela situação para mitigar esse impacto do fogo que viria. Nós identificamos, tem a mesa de situação do Corpo de Bombeiros, […] tem as linhas de Whatsapp e é simples assim. Nós falamos com o Corpo de Bombeiros, firmamos uma parceria, eles nos passaram três vezes ao dia essas informações por satélite, como estava a movimentação do fogo, que era uma forma de nós irmos mais rápido ou sabermos que o fogo estava entrando por determinado ponto. […] Nós fizemos algumas ações, mas o fogo foi muito avassalador e veio muito forte. Não tem culpa de ninguém, é que o fogo vem mesmo, às vezes por um raio, uma folha que queima. Não cabe falar que é o produtor, não. Inclusive na fazenda de um proprietário de um amigo nosso foi a queda de um cabo de energia. […] Por exemplo, teve um suposto foco de incêndio identificado no mapeamento e eu estava olhando o mapa e […] vi que era lá em casa. […] Era um foco de calor, mas não era incêndio. Era areia, que estava muito quente a quase 50º C”, disse Ida, ilustrando as peculiaridades dos desafios de combate às queimadas da região.

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Os produtores seguem engajados na luta para prevenir com a maior eficiência possível o problema. “Nós montamos um comitê de prevenção e combate aos incêndios aqui no município de Cáceres, com vários atores, e é isso que está nos ajudando muito a montar essas estratégias. […] A proposta é capacitar 400 brigadistas”, projetou.

ASPIRAÇÕES

Mas Ida observou que não quer conduzir sua gestão frente ao sindicato somente ‘apagando incêndios’, quase literalmente. “O que eu espero? Que a gente realmente consiga melhorar a qualidade competitiva e produtiva do Pantanal, das propriedades pantaneiras e diversificar. Nós temos uma parceria forte com a Embrapa Pantanal, Famato, Acrimat e sindicatos rurais da região exatamente para isso. Descobrir o que nós temos de diferencial e levantar essa régua, esse sarrafo. Porque o Pantanal é matrizeiro, ele vai ser sempre matrizeiro, um celeiro de cria. E a demanda futura que nós temos, o que nós observamos nos grandes centros de estudo, é por sustentabilidade e por proteína vermelha. Elas vão ter um incremento de demanda significativo. Vai ter uma demanda maior, nós estamos vendo o mercado asiático, oriental, a demanda por proteína vermelha e esse perfil sustentável. Então realmente quem mora no Pantanal, já por natureza, é sustentável e a ideia é essa. Ninguém precisa falar para o produtor rural o quão importante ele é e o que ele tem que fazer para o solo. Nós temos 20% da produção da agricultura no Brasil feita com biodefensivos. Ninguém precisa falar isso para o produtor. Ele tem consciência do quão importante isso é. E a proposta é melhorar a qualidade produtiva e a competitividade do setor”, reforçou.

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Ida também deixou seu recado para as mulheres do agro no Brasil. “Está tímida (a participação nas lideranças), mas elas estão galgando firmemente. […] Nós não estamos falando de homens e mulheres, nós estamos falando de uma sociedade. Eu estou à frente do Sindicato. Ele é machista? Não, lá estão meus primos, meus tios, meus vizinhos. […] Isso é fantástico. É isso que nós temos que enxergar, que nós estamos aqui para colaborar, para agregar. A mulher tem um perfil diferenciado, nós sabemos, e isso é muito importante, a comunicação. Isso que nós temos que observar”, concluiu Ida.

Assista a entrevista completa com a pecuarista e atual presidente do Sindicato Rural de Cáceres-MT pelo vídeo abaixo: